Um
que se foi
FERREIRA, Albano,
Arouca Vista de Dentro:
In Defesa de Arouca, de 14-04-1956, p. 7
«Foi com surpresa e emoção, com emoção
sentida, confesso-lhes, que recebi a notícia da morte do Manuelsinho do Hotel.
Antes que entre no rol dos esquecimentos, o
preito da minha saudade e das minhas homenagens ao homem singular que
permaneceu sempre na retina dos meus tempos de rapaz.
Morreu em quarta-feira de trevas, horas ou
momentos antes de sair e passar-lhe à porta a procissão dos «fogaréus», um dos
encantos da minha mocidade, onde se confundem ainda o toque da rela, os
archotes do Cantinho, atirados da torre, o Senhor da Cana Verde, as sete
espadas de Nossa Senhora, todo o drama da Paixão, a marcha fúnebre de São
Francisco, as luzinhas do rolo de cera das casas da vila e as luminárias de
Castro às pinhas do Ferral. Se tal procissão se tivesse realizado, o que a
chuva não permitiu, muito dos arouquenses não se teriam apercebido que tinham
passado junto do cadáver, de um homem honrado e de um seu conterrâneo que bem
sentiu e amou a sua e a nossa terra.
Conheci de perto a vida deste homem singular,
apagado, metido consigo, quase misantropo e ao mesmo tempo emotivo, que
experimentou, sofreu as contingências da vida e da fortuna e que, calado,
ignorado, se deixou morrer naquela casa que era das Meninas Bentas do tempo de
rapaz de meu Pai e onde umas velhinhas, de geito senhoril, se mostravam e
punham pendentes das janelas, umas colchas de chita antigas e vistosas à
passagem das procissões solenes.
Vem assim da minha já longínqua mocidade esse
homem com quem nunca perdi o contacto e a simpatia, do tempo em que era
conhecido pelo «Manuelsinho do Hot´le» e na mercearia do Cabo da Rua Direita,
às tardes, fornecia por dez reis uma isca larga a cheirar a azeite e, por um
vintém de fora, um micho e meio de quartilho de vinho a um ou outro necessitado
de merenda, como o Pala, à noite, sob a luz mortiça de um candeeiro de «gaz»,
às mulheres da Rua d´Arca, para o almoço do seguinte, cinco reis de café e
quinze reis de «açúcar» mascavado - preço por que ficava para uma família
inteira, que já se desabituara da caldo tradicional, e, de manhã, ao abrir das
portas, receber a visita obrigatória, ritual, do Adégas e da Gracinda para o
mata-bicho com que se iniciava as lidas do dia.
Manuel Ferreira da Silva vem dum passado que
ele viveu e eu ainda conheci, em que o teor da vida social, doméstico, e
económico, lento e estreito, se surpreendeu e se subverteu perante o cataclismo
que teve como rastilho a primeira grande guerra. Mais de que uma vez ele me
disse que tinha sido testemunha da mudança radical, catastrófica do mundo, sem
ponto de contacto, sem evolução natural de um passado para um presente, dum
nundo velho para um mundo novo. O parto da montanha desta feita não deu um
rato, mas o automóvel, o futebol, a eletricidade, os rádios, a bomba atómica, a
técnica, eu sei lá! – trepidação e assombro!
Assistiu de facto à morte de uma era e ao
nascimento e resplendor de outra. E tudo isso se reflectiu nele e de certo modo
alterou a sua sorte. Veio a conhecer a insuficiência e até, comercialmente, o
descrédito pelos azares da sorte. Mas o que nunca perdeu foi a dignidade, a
honradez, o seu desvelado amor pela terra que lhe foi berço.
Foi um ignorado caminheiro solitário. Foi um
apaixonado pelas coisas do passado, que recolhia se as visse abandonadas.
Defeitos? Admito que os tivesse, que eles são próprios deste barro humano que
nós não moldamos.
Devo-lhe atenções e a notícia de curiosidades
da nossa terra. Inclino-me perante o seu cadáver, com emoção e saudade. E aqui
lhe deixo esta homenagem de amigo e admirador, e de arouquense.»
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