sábado, 13 de janeiro de 2018

«Arouca vista de dentro»







FERREIRA, Albano, Arouca Vista de Dentro: Ruralismo (2)
 In Defesa de Arouca de 16-06-1956, pp. 1 e 3



Foi a Quinta de Drave o solar, melhor diria a matriz de família Martins, hoje espalhada pelas sete partidas do mundo e que há anos se reuniu em congresso familiar no próprio local da Drave

Aqui se juntaram os descendentes de um certo antepassado de nome Francisco Martins, o Primeiro, a que se seguiu outro Francisco Martins, o Segundo, e este para se vincar bem na existência e no futuro teve a feliz sorte de deixar nada mais nada menos de dez filhos, dos quais casaram seis, ramos de um tronco que frutificaram com exuberância e excecional resultado.

Os dois Martins foram paradigmas dum ruralismo tipo, levaram a propriedade à plenitude da riqueza e esplendor dentro do condicionalismo do tempo, da sua situação e possibilidade. Das três quintas de que venho falando, a de Drave foi a mais isolada e, pela paisagem, a amais triste. A actividade daqueles Martins devia ser excecional, excelente a sua qualidade de orientadores e ótimo o seu tino administrativo. Convergiam neles as virtualidades de um páter-famílias, à maneira bíblica.

A Quinta da Drave não dava enchanças para se alargar em terrenos de cultivo, apertada, cingida pelos montes que a rodeiam, mas foi nestes onde eles foram procurar o maior rendimento da propriedade.

O terreno de cultivo cobriria as necessidades de boca, mas era escasso para produzir moedas que, segundo a economia da época, se tornava necessário amealhar. Estas vinham então através da criação de gados. Os montados eram largos, sem vizinhos para repontar, e devia ser motivo de orgulho para a sua visão de lavradores saber que eles eram diariamente percorridos por centenas de cabeças de gado cabrum e lanígero e umas dezenas de bovinos. Por toda a parte se sentiam os espirros dos chibantes e o tilintar rouco dos chocalhos. Como bicho do monte, as abelhas também contribuíam para a sanidade da gente e da bolsa, com o mel e a cera.

Os trabalhos agrícolas e a pastorícia eram não só feitos com a gente da casa mas principalmente com uma teoria de criados, uns dezasseis, que para o jornal não havia onde recrutá-los. Toda essa gente produzia (as mulheres na faina e fiação do linho e da lã) e também consumia e temos diante de nós o que seria esse agregado familiar reunido para a refeição e o problema de o alimentar.

Havia o leite, o mel para o adoçar, os ovos, os produtos delicados da casa, mas a base, a comida de resistência, de substância, estava no caldo e broa, na carne de porco e no «briol», a rica pinga da região que dava alma até Almeida. Quantos cevados seriam sacrificados para proverem a Quinta de carne? Façam as contas e digam lá consigo, depois de verem o resultado: Caramba!

Nas festas do ano, e a mais importante devia ser como ainda hoje é nalgumas cortadas da região, o Entrudo, aparecia então o belo cabrito assado, a massa comprada na feira, e, para remate, a rica sopa seca torrada no forno que era de obrigação acender nos momentos solenes. Quando o almocreve aparecia a berrar de longe a «Frescura»! Havia então o desenjoo da sardinha escorchada assada na brasa e posta, às vezes em com a da fatia de broa, para a encharcar de molho, que era de consolar.

Fora isto, só o farnel de bacalhau frito ou frango assado pela romaria do S. Macário ou do S. Bartolomeu.

O mais do tempo no fundo do alguidar a trabalhar, a comer, a ver o céu e a queiró, e dormir.

Mas os páter-famílias que se sucediam não queriam as moedas amealhadas e os rendimentos da quinta só para guardar. Quando o moço, um dos filhos, criado então na cozinha entre as mulheres, se mostrava ladino e vivo era levado ao Seminário para os estudos e honrar a casa, ser padre. Mas a casa e a família Martins já eram entidades de categoria e representação, e quando as raparigas se mostravam nas festas apresentavam-se bem trajadas e com muito ouro. À missa, a Covêlo, não iam senão montadas em mulas bem tratadas e aparelhadas; os casamentos, ao tempo feitos sem namoro, eram precedidos da escritura de dote. A rapariga não saía de casa com as mãos a abanar; dinheiro, rico bragal de linho e muita limpeza. O futuro dos filhos era assim assegurado para se tornar próspero e prolongado.

Quando veio o primeiro padre o clima social da Drave deve ter sido alterado pela construção e bênção de uma capela para aquele rezar missa. A casa tinha padre e não podia haver maior honra no mundo. Deus estava mais perto e ter missa quotidiana era coisa de que nem todos se podiam gabar. Era honra das capelanias ricas, de cas de categoria.

A família Martins tinha no gérmen o tónus da germinação e da expansão para se desenvolver, se multiplicar em descendência, e quando tocou a trombeta para a reunião no próprio local de matriz, na Drave, feliz ideia de uma padre oriundo dela, aquele vale de Josaphat, a que simbolicamente presidia o espírito do patriarca Francisco Martins, que se queria honrar, deparou-se com uma multidão de pessoas que mais parecia, pelo número e variedade aparente da fortuna, romeiros em demanda do S. Macário! Vencidos, pelos que puderam, os caminhos que de Sul e de Ponte de Telhe levam à Drave, aqui convergiram os representantes da família Martins e então se põe de verificar que o mesmo laço prendia aquela terra o rural de mãos calosas e ásperas com o doutor, o engenheiro, o padre, o industrial, o comerciante, de mãos patrícias e acetinadas, em franca e aberta confraternização familiar, ramos do mesmo tronco e que as contingências da vida e da fortuna tornaram económica e socialmente desiguais, mas naquele momento todos ricos pela comunhão de sangue e origem, de sentimentos e até de farnel!

Tem vindo essa família periodicamente a reunir-se para que nela não entre o mórbus da decomposição, da dispersão, mas não obstante essas refrescadelas de confraternização, a Quinta perdeu a categoria que tivera no passado. Tanto ela como as do Toural e de S. Mamede perderam o seu carácter específico e ate o seu isolamento pelo fácil acesso que todas elas mais ou menos têm. Já o proprietário delas não vive na Quinta e para a Quinta, que a vida e as possibilidades são agora outras, como é bem outro o vinho que produziram pela invasão do «americano» que nelas medra como coisa ruim. Mal se ouvem, ao derredor, os espirros dos chibantes e o tilintar rouco dos chocalhos.  Comparados com o passado todas elas foram chão que deu uvas. Outros tempos, outros meios, outros costumes.

Oxalá que não sejam votadas ao abandono, transformadas em matas de eucaliptos.