«Arouca Vista de Dentro» era o nome da coluna de
Albano Ferreira (1897-1978) publicada durante vários anos no extinto
jornal arouquense «Defesa de Arouca». Pelo extraordinário valor etnográfico dos seus textos e pelo inestimável contributo que deu ao Conjunto Etnográfico de Moldes, passamos a transcrever os seus textos com a colaboração de Rui Sousa.
In
Defesa de Arouca de 16-06-1956, pp. 1 e 3
Foi a
Quinta de Drave o solar, melhor diria a matriz de família Martins, hoje
espalhada pelas sete partidas do mundo e que há anos se reuniu em congresso
familiar no próprio local da Drave
Aqui se
juntaram os descendentes de um certo antepassado de nome Francisco Martins, o
Primeiro, a que se seguiu outro Francisco Martins, o Segundo, e este para se
vincar bem na existência e no futuro teve a feliz sorte de deixar nada mais
nada menos de dez filhos, dos quais casaram seis, ramos de um tronco que
frutificaram com exuberância e excecional resultado.
Os dois
Martins foram paradigmas dum ruralismo tipo, levaram a propriedade à plenitude
da riqueza e esplendor dentro do condicionalismo do tempo, da sua situação e
possibilidade. Das três quintas de que venho falando, a de Drave foi a mais
isolada e, pela paisagem, a amais triste. A actividade daqueles Martins devia
ser excecional, excelente a sua qualidade de orientadores e ótimo o seu tino
administrativo. Convergiam neles as virtualidades de um páter-famílias, à
maneira bíblica.
A Quinta da
Drave não dava enchanças para se alargar em terrenos de cultivo, apertada,
cingida pelos montes que a rodeiam, mas foi nestes onde eles foram procurar o
maior rendimento da propriedade.
O terreno
de cultivo cobriria as necessidades de boca, mas era escasso para produzir
moedas que, segundo a economia da época, se tornava necessário amealhar. Estas
vinham então através da criação de gados. Os montados eram largos, sem vizinhos
para repontar, e devia ser motivo de orgulho para a sua visão de lavradores
saber que eles eram diariamente percorridos por centenas de cabeças de gado
cabrum e lanígero e umas dezenas de bovinos. Por toda a parte se sentiam os
espirros dos chibantes e o tilintar rouco dos chocalhos. Como bicho do monte,
as abelhas também contribuíam para a sanidade da gente e da bolsa, com o mel e
a cera.
Os
trabalhos agrícolas e a pastorícia eram não só feitos com a gente da casa mas
principalmente com uma teoria de criados, uns dezasseis, que para o jornal não
havia onde recrutá-los. Toda essa gente produzia (as mulheres na faina e fiação
do linho e da lã) e também consumia e temos diante de nós o que seria esse
agregado familiar reunido para a refeição e o problema de o alimentar.
Havia o
leite, o mel para o adoçar, os ovos, os produtos delicados da casa, mas a base,
a comida de resistência, de substância, estava no caldo e broa, na carne de
porco e no «briol», a rica pinga da região que dava alma até Almeida. Quantos
cevados seriam sacrificados para proverem a Quinta de carne? Façam as contas e
digam lá consigo, depois de verem o resultado: Caramba!
Nas festas
do ano, e a mais importante devia ser como ainda hoje é nalgumas cortadas da
região, o Entrudo, aparecia então o belo cabrito assado, a massa comprada na
feira, e, para remate, a rica sopa seca torrada no forno que era de obrigação
acender nos momentos solenes. Quando o almocreve aparecia a berrar de longe a
«Frescura»! Havia então o desenjoo da sardinha escorchada assada na brasa e
posta, às vezes em com a da fatia de broa, para a encharcar de molho, que era
de consolar.
Fora isto,
só o farnel de bacalhau frito ou frango assado pela romaria do S. Macário ou do
S. Bartolomeu.
O mais do
tempo no fundo do alguidar a trabalhar, a comer, a ver o céu e a queiró, e
dormir.
Mas os
páter-famílias que se sucediam não queriam as moedas amealhadas e os
rendimentos da quinta só para guardar. Quando o moço, um dos filhos, criado
então na cozinha entre as mulheres, se mostrava ladino e vivo era levado ao
Seminário para os estudos e honrar a casa, ser padre. Mas a casa e a família
Martins já eram entidades de categoria e representação, e quando as raparigas
se mostravam nas festas apresentavam-se bem trajadas e com muito ouro. À missa,
a Covêlo, não iam senão montadas em mulas bem tratadas e aparelhadas; os
casamentos, ao tempo feitos sem namoro, eram precedidos da escritura de dote. A
rapariga não saía de casa com as mãos a abanar; dinheiro, rico bragal de linho
e muita limpeza. O futuro dos filhos era assim assegurado para se tornar
próspero e prolongado.
Quando veio
o primeiro padre o clima social da Drave deve ter sido alterado pela construção
e bênção de uma capela para aquele rezar missa. A casa tinha padre e não podia
haver maior honra no mundo. Deus estava mais perto e ter missa quotidiana era
coisa de que nem todos se podiam gabar. Era honra das capelanias ricas, de cas
de categoria.
A família
Martins tinha no gérmen o tónus da germinação e da expansão para se
desenvolver, se multiplicar em descendência, e quando tocou a trombeta para a
reunião no próprio local de matriz, na Drave, feliz ideia de uma padre oriundo
dela, aquele vale de Josaphat, a que simbolicamente presidia o espírito do
patriarca Francisco Martins, que se queria honrar, deparou-se com uma multidão
de pessoas que mais parecia, pelo número e variedade aparente da fortuna,
romeiros em demanda do S. Macário! Vencidos, pelos que puderam, os caminhos que
de Sul e de Ponte de Telhe levam à Drave, aqui convergiram os representantes da
família Martins e então se põe de verificar que o mesmo laço prendia aquela
terra o rural de mãos calosas e ásperas com o doutor, o engenheiro, o padre, o
industrial, o comerciante, de mãos patrícias e acetinadas, em franca e aberta
confraternização familiar, ramos do mesmo tronco e que as contingências da vida
e da fortuna tornaram económica e socialmente desiguais, mas naquele momento
todos ricos pela comunhão de sangue e origem, de sentimentos e até de farnel!
Tem vindo
essa família periodicamente a reunir-se para que nela não entre o mórbus da
decomposição, da dispersão, mas não obstante essas refrescadelas de
confraternização, a Quinta perdeu a categoria que tivera no passado. Tanto ela
como as do Toural e de S. Mamede perderam o seu carácter específico e ate o seu
isolamento pelo fácil acesso que todas elas mais ou menos têm. Já o
proprietário delas não vive na Quinta e para a Quinta, que a vida e as
possibilidades são agora outras, como é bem outro o vinho que produziram pela
invasão do «americano» que nelas medra como coisa ruim. Mal se ouvem, ao
derredor, os espirros dos chibantes e o tilintar rouco dos chocalhos. Comparados com o passado todas elas foram
chão que deu uvas. Outros tempos, outros meios, outros costumes.
Oxalá que
não sejam votadas ao abandono, transformadas em matas de eucaliptos.
Ruralismo
(1)
In Defesa de Arouca de 02-06-1956,
pp. 1 e 3
«Que eu conheça, tem o concelho três quintas
latifundiárias que, pelo condicionalismo da sua situação, deviam ter, e tiveram
no passado, vida própria, específica, diferente do comum dos casais da órbita
dos agregados populacionais ou das de fácil acesso. Qualquer delas estava, e
todas estão encravadas entre montes. O seu isolamento no passado devia-se ter
tornado como que uma espécie de campos de concentração, em que a vida se
confinava numa paisagem rígida, condenada, eterna pela repetição: - céu e
queiró! Assim a vida doméstica e social da gente da casa estava forçadamente
circunscrita ao agregado familiar, sempre estreito. Vivia-se não dentro de uma
gaiola, mas no fundo de um alguidar. Este habitual devia ser criado um tipo
humano suis generis.
Quero-me referir às três quintas, então
importantes, do concelho: à de São Mamede, na freguesia de S. Eulália, à do
Toural, na de Canelas e à da Drave, na de Covêlo de Paivó.
Qualquer delas em perfeito isolamento, com
vida própria de uma clausura. Vivia-se para a quinta e da quinta. Foi assim, de
resto, que nos recuados tempos se fundaram ou instituíram os mosteiros. O mundo
começava e acabava ali. Vivia-se bem? Vivia-se mal? Vivia-se pelo menos com
suficiência e isso é o que importava. Naqueles tempos a vida era muito limitada
– trabalhar, comer, dormir, e as necessidades espirituais não deviam
ultrapassar a obrigação dominical de ir à missa na igreja paroquial,
desenferrujar a língua no adro com os amigos, e, com a promessa, ir à romaria
mais importante da redondeza e então apreciar a música no palanque, e, à noite,
os copinhos da iluminação e as «lágrimas» dos foguetes. Economicamente, moeda
que ali entrasse, para ali ficava como no fundo de um poço, em aumento dos
réditos da fortuna da casa.
Vintém que lá caísse só saía da arca e
tornava a ver a luz do dia nos momentos solenes do baptizado ou de casamento
que, para as contribuições obrigatórias ao Governo, Governo era então uma
individualidade real e humana com retrato nas notas de cem mil réis, a
ginástica era outra não com o dinheiro amealhado, que esse era para o que era,
mas com dinheiro novo que se obtinha geralmente com umas fornadas de carvão
convertidas em níqueis.
Era com este ou outro material, conforme as
circunstâncias, transformado em moeda, que o casal se punha quite com o Estado.
O dilema em economia era este: - Pôr e não tirar – por que a experiência tinha
demonstrado iniludivelmente que donde se tira e se não põe era uma vez uma
quinta, era a falta de tino, a miséria, a desonra.
Qual seria a base da alimentação que a
quinta, só por si, devia fornecer, aos seus habitantes? Quanto às viandas, o
problema para nós não dependia de solução: os porcos, os cabritos, os
galináceos asseguravam de longe as necessidades de carne, do conduto. Devia ser
motivo de orgulho para aquela gente mostrar a salgadeira bem provida, além do
mais, de umas dezenas de presuntos e multidão sem número dos salpicões e
chouriças. Pão, base da alimentação dos rurais, era o produto essencial da
quinta: comia-se a toda a hora, dava-se ao pobre que por ali aparecesse; vinho,
hortaliça e fruta também a quinta os fornecia com abundancia; os gastos nãos os
consumiam e todos eles constituíam o rendimento natural da propriedade; era
deles afinal que vinha o fundo de receita. Mas o resto, que nós hoje
representamos dela massa, pelo arroz e pela batata?
Batata era coisa desconhecida da época, o
arroz e massa era preciso comprá-los na venda, e isso, além do gasto, era mimo
de que os rurais só usavam nas festas do ano ou quando recebiam visitas que era
preciso honrar. Haveria apenas o recuso do feijão, que a cultura do
grão-de-bico não tinha tradição na região (deixem passar o ão ão).
Bem sei que é de criar água na boca uma
refeição de reluzentos grelos com rojões e uns ovos estrelados ao de cima. Mas
nem sempre feijões nem sempre grelos, como nem sempre galinha, nem sempre
rainha. Caldo, broa, hortaliça, carne de porco, continuadamente, eternos como a
paisagem - céu e queiró, era de derrancar um cristão!
Deixo o problema aos entendidos de história
e culinária.
A quinta de São Mamede, que eu saiba, não
tem história. A do Toural teve a «honra» de ser visitada e ter agasalhado, com
galhardia, os quadrilheiros do Zé do Telhado. De Mansôres veio um estafeta em
alvoroço: Os homens, a quadrilha do Zé do Telhado vem vos assaltar a casa! E
veio realmente, mas quando ali chegou já todos os valores, ouro e dinheiro,
tinham mudado de posto, e apenas ficara a fortaleza de ânimo para se não darem
por achados e dizerem que valores era coisa que não havia, por a vida estar
difícil, mas que entrassem, e descansassem enquanto se preparava uns ovos com
salpicão ou se liquidava e arranjava um cabrito. E a pinguita escapava. A
quadrilha por sua vez foi também amável. Deu uma vista de olhos pelas arcas e
esconsos e regalou-se despois com a opípara refeição e possível é que até
dormisse a sua sonêca, que a gente da casa era de boa índole. Sorte e
diplomacia esconjuraram o perigo.
A de Drave, solar dos Martins, tem lugar à
parte pela sua projecção no futuro, que é agora o nosso presente. Mas a sua
história fica para uma segunda dose nesta secção, enquanto as «gralhas» vão
fazendo das suas, como é costume, e de obrigação.»
Eh Mansores!
In
Defesa de Arouca de 12-05-5-1956, p. 3
«A coisa não pode ficar restrita e contida
na meia dúzia de linhas perdidas na secção do noticiário avulso das nossas
freguesias. Quero-me referir, e como arouquense faço-o orgulhosamente, ao que
se passou na freguesia de Mansores e que se conta em quatro palavras:
44
pessoas trataram de remover a entulheira;
50 pessoas, com uma caminheta, cortaram madeiras e as levaram para o local;
uma turma de carpinteiros se lançou na tarefa de armar cobrir a casa, que tinha a área coberta de 180 metros quadrados – obra que se iniciou no dia 2 e estava concluída no dia 9. Sete dias.
50 pessoas, com uma caminheta, cortaram madeiras e as levaram para o local;
uma turma de carpinteiros se lançou na tarefa de armar cobrir a casa, que tinha a área coberta de 180 metros quadrados – obra que se iniciou no dia 2 e estava concluída no dia 9. Sete dias.
A gente lê e não pode deixar de ficar
chocado com tamanho espetáculo de solidariedade e grandeza. Uma freguesia, um
povo inteiro, irmanado num mesmo sentimento de carinho e piedade perante a
desventura de um casal que sofreu a irreparável perda de dois filhos e a ruína
do seu próprio lar.
A freguesia não ficou indiferente perante
tamanha desgraça, não se encostou ao muro das lamentações chorando a sorte do
seu semelhante e seu conterrâneo; não abriu no papel pautado a relação dos
benfeitores que quisessem concorrer com a sua esmola para de algum modo valer
aquele casal que perdera os filhos e haveres em pavoroso incêndio. Não! Foi
direita aos escombros ainda quentes da habitação que foi um lar e recompô-la,
simbolicamente com um ramo de oliveira, mas efetivamente, materialmente, com
carinho, transformando-o no mesmo lar.
Só as grandes ideias de solidariedade
humana, próprias dos povos cultos ou moralmente bem constituídos é que dão
fortaleza de atitudes ou práticas semelhantes às dos habitantes de Mansores.
Eh, Mansorianos, como sois grandes! Como eu vos admiro!
A vossa grandeza não se contém só neste
gesto de solidariedade. Para quem tivesse olhos de ver, devia notar que a
freguesia de Mansôres era, apara da de Alvarenga, no outro extremo, a mais
progressiva freguesia do concelho, tanto mais para acentuar que nela se não
verificou a existência daquele ouro negro que se desentranhava da terra e se chamava
volfrâmio.
Sempre viveu e dilatou com os meios próprios
e o bom senso e equilíbrio dos seus habitantes, que, a fora do comum,
beneficiaram apenas da influência dos seus mais diletos dos amigos – os
pinheiros. Ao contrário dos volframistas de torna-viagem, não se deixou
vislumbrar pela quimera da fortuna caída do céu. Esta teve e tem tido destino
bem diferente do que se contém deste conceito: água o deu, água o levou! Não se
entregou à loucura de, como o volframista, ir de automóvel ao Porto tomar café,
de atestar o estomago de vinho e pão de ló! Ligado à terra, o Mansoriano à
terra deu e dá o que de bom senso aconselha, no desbravar do torrão, na
construção e alinhamento do muro, no continuo levantamento de moradias
modernas, higiénicas, no melhoramento da casa velha, na latada, na adubação do
agro, na obtenção da água, na luz elétrica, no melhoramento do nível da vida,
no aperfeiçoamento, enfim, da sua ética!
É um povo cheio de virtualidades, de que é,
exemplo vivo e inconfundível o acto de solidariedade de agora, que transcende o
comum dos homens, pela decisão, pela rapidez, pelo inesperado. Eh, Mansorianos,
podeis dizer com orgulho:
Nós aqui somos assim!»
Um que se foi
In Defesa de Arouca, de 14-04-1956, p. 7

Antes que entre no rol dos esquecimentos, o
preito da minha saudade e das minhas homenagens ao homem singular que
permaneceu sempre na retina dos meus tempos de rapaz.
Morreu em quarta-feira de trevas, horas ou
momentos antes de sair e passar-lhe à porta a procissão dos «fogaréus», um dos
encantos da minha mocidade, onde se confundem ainda o toque da rela, os
archotes do Cantinho, atirados da torre, o Senhor da Cana Verde, as sete
espadas de Nossa Senhora, todo o drama da Paixão, a marcha fúnebre de São
Francisco, as luzinhas do rolo de cera das casas da vila e as luminárias de
Castro às pinhas do Ferral. Se tal procissão se tivesse realizado, o que a
chuva não permitiu, muito dos arouquenses não se teriam apercebido que tinham
passado junto do cadáver, de um homem honrado e de um seu conterrâneo que bem
sentiu e amou a sua e a nossa terra.
Conheci de perto a vida deste homem
singular, apagado, metido consigo, quase misantropo e ao mesmo tempo emotivo,
que experimentou, sofreu as contingências da vida e da fortuna e que, calado,
ignorado, se deixou morrer naquela casa que era das Meninas Bentas do tempo de
rapaz de meu Pai e onde umas velhinhas, de geito senhoril, se mostravam e
punham pendentes das janelas, umas colchas de chita antigas e vistosas à
passagem das procissões solenes.
Vem assim da minha já longínqua mocidade
esse homem com quem nunca perdi o contacto e a simpatia, do tempo em que era
conhecido pelo «Manuelsinho do Hot´le» e na mercearia do Cabo da Rua Direita,
às tardes, fornecia por dez reis uma isca larga a cheirar a azeite e, por um
vintém de fora, um micho e meio de quartilho de vinho a um ou outro necessitado
de merenda, como o Pala, à noite, sob a luz mortiça de um candeeiro de «gaz»,
às mulheres da Rua d´Arca, para o almoço do seguinte, cinco reis de café e
quinze reis de «açúcar» mascavado - preço por que ficava para uma família
inteira, que já se desabituara da caldo tradicional, e, de manhã, ao abrir das
portas, receber a visita obrigatória, ritual, do Adégas e da Gracinda para o
mata-bicho com que se iniciava as lidas do dia.
Manuel Ferreira da Silva vem dum passado que
ele viveu e eu ainda conheci, em que o teor da vida social, doméstico, e
económico, lento e estreito, se surpreendeu e se subverteu perante o cataclismo
que teve como rastilho a primeira grande guerra. Mais de que uma vez ele me
disse que tinha sido testemunha da mudança radical, catastrófica do mundo, sem
ponto de contacto, sem evolução natural de um passado para um presente, dum
nundo velho para um mundo novo. O parto da montanha desta feita não deu um
rato, mas o automóvel, o futebol, a eletricidade, os rádios, a bomba atómica, a
técnica, eu sei lá! – trepidação e assombro!
Assistiu de facto à morte de uma era e ao
nascimento e resplendor de outra. E tudo isso se reflectiu nele e de certo modo
alterou a sua sorte. Veio a conhecer a insuficiência e até, comercialmente, o
descrédito pelos azares da sorte. Mas o que nunca perdeu foi a dignidade, a
honradez, o seu desvelado amor pela terra que lhe foi berço.
Foi um ignorado caminheiro solitário. Foi um
apaixonado pelas coisas do passado, que recolhia se as visse abandonadas.
Defeitos? Admito que os tivesse, que eles são próprios deste barro humano que
nós não moldamos.
Devo-lhe atenções e a notícia de
curiosidades da nossa terra. Inclino-me perante o seu cadáver, com emoção e saudade.
E aqui lhe deixo esta homenagem de amigo e admirador, e de arouquense.»
Aquela Serra
In Defesa de Arouca n.º 36, de 31-03-1956. p. 2

Valeu-lhe
até a previdência de se fazer acompanhar de um pingato de estalo para atalhar a
suadela e parece-me que ainda estou a ouvi-lo, eu que não estava presente mas
sei como elas acontecem, proferir aquela sentença de homem asizado: fica-te
Mizarela, a Cascais uma vez e nunca mais!...
Se não
fôra o panorama, para si inédito, que disfrutara ao contemplar o vale que tinha
a seus pés e os longes que avistara das alturas e sobretudo aquela esplendorosa
procissão religiosa, que pelo encanto inesperado muito o surpreendeu, pois
donde estava lhe deu por momentos, sob o sol glorioso, com o colorido quente
dos andores, das opas e dos atavios das mulheres, em longas filas, a esvoaçar
dos rútilos pendões, os cânticos, o tom marcial das marchas musicais, a que só
faltava a avançada clássica das trombetas, a visão perfeita, de uma marcha
triunfal e ao mesmo tempo propiciatória aquele deus Pan dos tempos Helénicos, -
o meu amigo não teria dado por bem empregado, como deu, a estopada que lhe
puzera o corpo num feixe e a pele da cara e dos braços queimada como se viera
de atalhar um incêndio.
Por aqui
ficou o seu contacto com a serra. Voltou a olhá-la como reservatório
inesgotável das fontes e das levadas, e, homem do vale, sem interesse.
Longe de
si, e de todos nós afinal estava a ideia de que aquela serra viria a ser, como
foi descoberta por um engenheiro florestal enamorado, cujo nome não pode deixar
de ser aqui lembrado – o Eng.º Freire Temudo, que revelou aos arouquenses estar
ali, naquele massiço, um inexplorado elemento de riqueza e encanto.
Começou
então o amorio da Administração Florestal, pelo atavio das suas encostas com
essências apropriadas, a esmeralda dos seus jardinzitos-viveiros, a salpicadela
das suas moradias brancas, a tela da estradinhas serviçais, por onde já singram
desde os biciclos puxados por um asno aos palácios rolantes das camionetas de luxo.
Ali vai
nascer a riqueza e a valorização da nossa terra, incompreendida, odiada mesmo,
por muitos? Sem dúvida, mas riqueza e valorização.
Já acto
assinalado, por ser o da arrancada, foi a abertura da estrada da Granja de
Figueiredo às alminhas da Granja e, daqui ao planalto, o arranjo do impossível
carreiro de cabras pela encosta eriçada de fragas, onde viria a assinalar-se um
brasileiro-regresso que desejoso de ver a sua terra meteu uma «espada» por
aquele carreiro e apareceu no Merujal ante a estupefação do nativo, acto
heroico que foi depois repetido e ampliado pelo Albino Calçada que, desta vez
sem marreta, quis dar cabo de uma camioneta que levou de guinada até aquelas
alturas – façanhas tão heroicas, tão brutais, como os daquela lendária
travessia do atlântico que espantou as gentes e em que os meus heróis correram
idêntico perigo – uns de irem para o fundo do mar e outros para a profundeza da
escraviança, sem esperança de se lhes aproveitar a alma...
Todos
estes sucessos, meu amigo, têm modificado e estão a modificar a vida íntima,
pacífica e silenciosa da nossa serra. Albergaria já tem casas cobertas a telha
marselha e perdeu o seu esplêndido isolamento. O Merujal trouxe à baixa, à
festa da Feira das Colheitas, a riqueza ignorada das suas danças e dos seus
cantares, rapazes e raparigas ricos de genica que o velho Campas agrupou e fez
um elemento folclórico que bem pode representar Arouca em qualquer competição.
Já os
campistas e um ou outro skiador de boa vontade lhe procuram altitude, a
amplidão de horizontes e a neve. Já a Freita tem a honra de ser indicada nos
mapas das associações ao ar livre como detentora do acidente geográfico mais
importante da Península. Já à Lágem acodem dezenas de automóveis e camionetas;
já os de cá da vila vão até lá cima gisar uns almoços e passarem a tarde de
papo para o ar. Já outros têm renovado a miragem, que eu já experimentei, de
construírem ali um covil para férias ou para entreter os ócios na pesca e na
caça. Outros, mais objectivos, tem pensado nos benefícios que se podem tirar
com a cultura industrial da batata, à semelhança do que se faz em outras serras
com resultado e um ou outro numa casa de repouso para doentes ou derreados.
E tudo
isto e muito mais, meu amigo, está apenas dependente do primeiro que arrancar,
instalando ali um casebre gelioso a que possa dar um ar de pouzada par os
chamados fins de semana da gente da cidade.
A Freita
tem condições especialíssimas para se desenvolver e se valorizar, a primeira
das quais por estar a dois passos do Porto e depois por ser a serra mais alta,
mais acidentada e ao mesmo tempo mais planaltos e bonita ao alcance de mão.
Condição fundamental é sem dúvida uma boa estrada de acesso, já, de resto,
aberta, mas que preciso é melhorá-la e macadamanisa-la.
Outra é
levar até Manhouce para tornar mais rápido o trajecto de São Pedro do Sul, da
Beira, afinal, ao norte, aquela estradinha serviçal que os beneméritos serviços
florestais já abriram até Gestoso. Naquela e nesta estradinha estão o rastilho
de valorização da Freita. Contemos com o dinamismo, sempre patente, da
Administração Florestal, que ainda pode exceder-se se nos der a possibilidade
de poder mostrar-nos que naquela serra existe de facto o acidente geográfico
mais importante da Península, pondo à descoberta, por um miradouro, a fecha, a
tal queda de água de que muito se fala e ninguém vê. E o meu amigo, para
terminar esta troa de impressões, fica com o especialíssimo encargo de dizer ao
velho Campas que não deixe estiolar no Merujal esse filão de encanto que é o
seu grupo folclórico, metendo nele gente nova, sangue novo. Valorisemos a nossa
terra.»
Albergaria das Cabras
«Não
foi, soceguem, qualquer acontecimento ou facto anormal que mereceu ser posta
hoje em relevância a mais arrumada, esquecida e pacata freguesia deste concelho
– Albergaria das Cabras. Daqui a pouco diremos o motivo que nos levou a
chamarmos à «Defesa» a primeira das freguesias na lista do concelho.
Albergaria das Cabras é talvez a
mais pobre e a mais curiosa das nossas freguesias. Tipicamente serrana,
enclausurada entre penedias, bucôlica, viveu e vive sem problemas. É muito
limitada a actividade dos seus habitantes: o granjeio da terra e a pastorícia a
paz virgiliana de que falam os poetas.
Típicos, inconfundíveis quando
descem ao vale e sobem a encosta da Freita carregando, atestados, os loucos
corporais, destacam-se neles duas estirpes, dois elementos etnográficos
curiosos.
Sendo Albergaria um agregado
familiar imposto pela orografia e pelo isolamento, condicionados os naturais a
casamentos – dois elementos autoctones os separam contudo: o loiro, de olhos
azuis, cabelos encaracolados, altos, erectos, sêcos, do tipo nórdico, e o
moreno, com predominância nas mulheres, miúdos, cabelos pretos, retintos,
escorregadios, lisos, olhos negros, brilhantes, do tipo arâbico.
Dois elementos os unem contudo: o
patronímico TAVARES e a espêrteza, a inteligência, a desconfiança.
O patronímico TAVARES, resto de
personalidade notável perdida no tempo, que tem vindo através das idades como
um seixo rolado no leito de um comprido rio, é tão imperioso que para
distinguir os homens se tem de se socorrer do apelido! O Mizarela, o Ruço, o da
Venda, o do Meio, o Casanova (o Casanova!) etc. E a desconfiança é um produto
típico do isolamento... e do fisco. Nenhum nenhum mortal, que eu saiba, os viu
a dançar, a cantar, a tocar qualquer instrumento músico, e sendo uma região de
analfabetos todos aprenderam a ler e escrever quando ali funcionaram umas
escolas móveis; não acodem a festas, nem mesmos as mais notáveis.
Que me lembre nunca vi nenhum pelo
S. Bartolomeu, pela Senhora da Lágem, as mais atrativas do concelho. Também não
aparecem, em primeira mão, a qualquer forasteiro, que lhe devasse a povoação:
Não vê viv´alma quem fôr a Albergaria, nem o rapazio, sempre pronto a ver «os
tios» em qualquer terra habitável. Todos se metem em casa, silenciosos, quando
lobrigam, a convergir sobre a povoação, qualquer mortal estranho ao meio.
Sendo assim como são, não têm
problemas no seu agregado, nem aspirações. São um produto da terra e a terra é
para eles a única ambição. Sendo pobres na generalidade, não são contudo
medicantes.
Têm ali os etnógrafos vastos
elementos de interesse e de estudo. Aqui se sugere a visitarem Albergaria e a
estudarem os seus naturais.
Feito isto à maneira de introdução,
surge agora a razão destas mal notadas linhas – porque não havemos de reduzir e
limitar só ao termo de Albergaria o topónimo Albergaria das Cabras? - das
Cabras, para quê? Não estará mais certo, mais conforme a razão da fundação da
freguesia que o seu nome seja só o de Albergaria?
Não é novidade para ninguém que a
povoação teve a sua origem na fundação pelas freiras do Mosteiro, nos recuados
tempos, de uma Albergaria na serra para recolha e pouzada dos viandantes e
almocreves, e talvez liteiras com donas e bispos, que do Porto tivessem de
tomar a direcção de Vizeu. Era o caminho mais próximo, mais comodo em face da
vida romana de que vemos ainda restos junto de Gestoso. A empresa não se
tornaria difícil no verão ou ocasião de tempo limpo e firme.
Mas o mesmo não aconteceria no
Inverno e arriscadíssima, diríamos impraticável, seria em períodos de nevoeiro;
e quem já experimentou ser inesperadamente apanhado pelo nevoeiro na Freita,
sem pontos de referência para orientação, ou nunca de lá sai, por muito que
ande, vai ter a algum barranco ou regressa ao ponto de partida, julgando que
progrediu na direcção almejada. E naquele deserto pode berrar o que quizer que
ninguém, a não ser por milagre, lhe acode. Foi uma necessidade e uma obra de
caridade estabelecer naquela serra, ao tempo deserta, uma Albergaria. Desta
nasceu a actual freguesia e povoações limítrofes. A Freita seria o Adamastor de
granito para os viandantes.
Povoada a serra, Albergaria ficou
sendo o topónimo da inicial pouzada. Fácil e lógico foi o acrescento «das
Cabras», por que, animais dos meios pobres e escassos de alimentação, seriam o
único a fornecer de carne os moradores da terra. Os currais de então estão ali
ainda bem patentes e tirante uma ou outra casa com geito de habitável, o resto,
onde vive gente, se confunde com os currais daquele animal daninho e rústico.
Os tempos são agora outros para
Albergaria: Já tem fácil acesso pelas estradas dos beneméritos serviços da
Administração Florestal, caminho aberto para a telha, para o vidro, para o
baton, paras as meias de Nylon, para o progresso, enfim. Já os seus jóvens
naturais frequentam o Liceu.
E vejam agora o embaraço destes
civilizados perante a pergunta duma camarada: Donde é o menino? – de Albergaria
das, das Cabras! – ??, de quê? das Cabras?
– Mas isso é um curral!
Poupemos aos seus naturais e até à
harmonia gráfica dos topónimos do concelho, o nem de Cabras, que nada tem de
simpático, e de fácil remédio. Por que não há-de ficar Albergaria apenas ou
Albergaria da Serra, para os que gostam das coisas mais arredondadas? Bem sei
que há por esse país fóra topónimos patuscos: – Escalos de Cima, Alguidares de
Baixo, Currais, eu sei lá! Aqui é outra gente.
Também na nossa freguesia de
Espiunca houve uma povoação que mudou de nome por que o primitivo não era dos
mais sonoros e escorreitos. Foi Vila Viçosa.
Nada custou a mudança. Façam as
entidades oficiais o mesmo a Albergaria das Cabras. É uma justiça. Seria até
uma obra de caridade.»
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