sexta-feira, 21 de abril de 2017

«Arouca Vista de Dentro»



Um que se foi

FERREIRA, Albano, Arouca Vista de Dentro:

In Defesa de Arouca, de 14-04-1956, p. 7


«Foi com surpresa e emoção, com emoção sentida, confesso-lhes, que recebi a notícia da morte do Manuelsinho do Hotel.
Antes que entre no rol dos esquecimentos, o preito da minha saudade e das minhas homenagens ao homem singular que permaneceu sempre na retina dos meus tempos de rapaz.
Morreu em quarta-feira de trevas, horas ou momentos antes de sair e passar-lhe à porta a procissão dos «fogaréus», um dos encantos da minha mocidade, onde se confundem ainda o toque da rela, os archotes do Cantinho, atirados da torre, o Senhor da Cana Verde, as sete espadas de Nossa Senhora, todo o drama da Paixão, a marcha fúnebre de São Francisco, as luzinhas do rolo de cera das casas da vila e as luminárias de Castro às pinhas do Ferral. Se tal procissão se tivesse realizado, o que a chuva não permitiu, muito dos arouquenses não se teriam apercebido que tinham passado junto do cadáver, de um homem honrado e de um seu conterrâneo que bem sentiu e amou a sua e a nossa terra.
Conheci de perto a vida deste homem singular, apagado, metido consigo, quase misantropo e ao mesmo tempo emotivo, que experimentou, sofreu as contingências da vida e da fortuna e que, calado, ignorado, se deixou morrer naquela casa que era das Meninas Bentas do tempo de rapaz de meu Pai e onde umas velhinhas, de geito senhoril, se mostravam e punham pendentes das janelas, umas colchas de chita antigas e vistosas à passagem das procissões solenes.
Vem assim da minha já longínqua mocidade esse homem com quem nunca perdi o contacto e a simpatia, do tempo em que era conhecido pelo «Manuelsinho do Hot´le» e na mercearia do Cabo da Rua Direita, às tardes, fornecia por dez reis uma isca larga a cheirar a azeite e, por um vintém de fora, um micho e meio de quartilho de vinho a um ou outro necessitado de merenda, como o Pala, à noite, sob a luz mortiça de um candeeiro de «gaz», às mulheres da Rua d´Arca, para o almoço do seguinte, cinco reis de café e quinze reis de «açúcar» mascavado - preço por que ficava para uma família inteira, que já se desabituara da caldo tradicional, e, de manhã, ao abrir das portas, receber a visita obrigatória, ritual, do Adégas e da Gracinda para o mata-bicho com que se iniciava as lidas do dia.
Manuel Ferreira da Silva vem dum passado que ele viveu e eu ainda conheci, em que o teor da vida social, doméstico, e económico, lento e estreito, se surpreendeu e se subverteu perante o cataclismo que teve como rastilho a primeira grande guerra. Mais de que uma vez ele me disse que tinha sido testemunha da mudança radical, catastrófica do mundo, sem ponto de contacto, sem evolução natural de um passado para um presente, dum nundo velho para um mundo novo. O parto da montanha desta feita não deu um rato, mas o automóvel, o futebol, a eletricidade, os rádios, a bomba atómica, a técnica, eu sei lá! – trepidação e assombro!
Assistiu de facto à morte de uma era e ao nascimento e resplendor de outra. E tudo isso se reflectiu nele e de certo modo alterou a sua sorte. Veio a conhecer a insuficiência e até, comercialmente, o descrédito pelos azares da sorte. Mas o que nunca perdeu foi a dignidade, a honradez, o seu desvelado amor pela terra que lhe foi berço.
Foi um ignorado caminheiro solitário. Foi um apaixonado pelas coisas do passado, que recolhia se as visse abandonadas. Defeitos? Admito que os tivesse, que eles são próprios deste barro humano que nós não moldamos.
Devo-lhe atenções e a notícia de curiosidades da nossa terra. Inclino-me perante o seu cadáver, com emoção e saudade. E aqui lhe deixo esta homenagem de amigo e admirador, e de arouquense.»