FERREIRA, Albano,
Arouca Vista de Dentro: Ruralismo (2)
In Defesa de Arouca de 16-06-1956, pp. 1 e 3
In Defesa de Arouca de 16-06-1956, pp. 1 e 3
Foi a Quinta de
Drave o solar, melhor diria a matriz de família Martins, hoje espalhada pelas
sete partidas do mundo e que há anos se reuniu em congresso familiar no próprio
local da Drave
Aqui se juntaram os
descendentes de um certo antepassado de nome Francisco Martins, o Primeiro, a
que se seguiu outro Francisco Martins, o Segundo, e este para se vincar bem na
existência e no futuro teve a feliz sorte de deixar nada mais nada menos de dez
filhos, dos quais casaram seis, ramos de um tronco que frutificaram com
exuberância e excecional resultado.
Os dois Martins
foram paradigmas dum ruralismo tipo, levaram a propriedade à plenitude da
riqueza e esplendor dentro do condicionalismo do tempo, da sua situação e
possibilidade. Das três quintas de que venho falando, a de Drave foi a mais
isolada e, pela paisagem, a amais triste. A actividade daqueles Martins devia
ser excecional, excelente a sua qualidade de orientadores e ótimo o seu tino
administrativo. Convergiam neles as virtualidades de um páter-famílias, à
maneira bíblica.
A Quinta da Drave
não dava enchanças para se alargar em terrenos de cultivo, apertada, cingida
pelos montes que a rodeiam, mas foi nestes onde eles foram procurar o maior
rendimento da propriedade.
O terreno de cultivo
cobriria as necessidades de boca, mas era escasso para produzir moedas que,
segundo a economia da época, se tornava necessário amealhar. Estas vinham então
através da criação de gados. Os montados eram largos, sem vizinhos para
repontar, e devia ser motivo de orgulho para a sua visão de lavradores saber
que eles eram diariamente percorridos por centenas de cabeças de gado cabrum e
lanígero e umas dezenas de bovinos. Por toda a parte se sentiam os espirros dos
chibantes e o tilintar rouco dos chocalhos. Como bicho do monte, as abelhas
também contribuíam para a sanidade da gente e da bolsa, com o mel e a cera.
Os trabalhos
agrícolas e a pastorícia eram não só feitos com a gente da casa mas
principalmente com uma teoria de criados, uns dezasseis, que para o jornal não
havia onde recrutá-los. Toda essa gente produzia (as mulheres na faina e fiação
do linho e da lã) e também consumia e temos diante de nós o que seria esse
agregado familiar reunido para a refeição e o problema de o alimentar.
Havia o leite, o mel
para o adoçar, os ovos, os produtos delicados da casa, mas a base, a comida de
resistência, de substância, estava no caldo e broa, na carne de porco e no
«briol», a rica pinga da região que dava alma até Almeida. Quantos cevados
seriam sacrificados para proverem a Quinta de carne? Façam as contas e digam lá
consigo, depois de verem o resultado: Caramba!
Nas festas do ano, e
a mais importante devia ser como ainda hoje é nalgumas cortadas da região, o
Entrudo, aparecia então o belo cabrito assado, a massa comprada na feira, e,
para remate, a rica sopa seca torrada no forno que era de obrigação acender nos
momentos solenes. Quando o almocreve aparecia a berrar de longe a «Frescura»!
Havia então o desenjoo da sardinha escorchada assada na brasa e posta, às vezes
em com a da fatia de broa, para a encharcar de molho, que era de consolar.
Fora isto, só o
farnel de bacalhau frito ou frango assado pela romaria do S. Macário ou do S.
Bartolomeu.
O mais do tempo no
fundo do alguidar a trabalhar, a comer, a ver o céu e a queiró, e dormir.
Mas os
páter-famílias que se sucediam não queriam as moedas amealhadas e os
rendimentos da quinta só para guardar. Quando o moço, um dos filhos, criado
então na cozinha entre as mulheres, se mostrava ladino e vivo era levado ao
Seminário para os estudos e honrar a casa, ser padre. Mas a casa e a família
Martins já eram entidades de categoria e representação, e quando as raparigas
se mostravam nas festas apresentavam-se bem trajadas e com muito ouro. À missa,
a Covêlo, não iam senão montadas em mulas bem tratadas e aparelhadas; os
casamentos, ao tempo feitos sem namoro, eram precedidos da escritura de dote. A
rapariga não saía de casa com as mãos a abanar; dinheiro, rico bragal de linho
e muita limpeza. O futuro dos filhos era assim assegurado para se tornar
próspero e prolongado.
Quando veio o
primeiro padre o clima social da Drave deve ter sido alterado pela construção e
bênção de uma capela para aquele rezar missa. A casa tinha padre e não podia
haver maior honra no mundo. Deus estava mais perto e ter missa quotidiana era
coisa de que nem todos se podiam gabar. Era honra das capelanias ricas, de cas
de categoria.
A família Martins
tinha no gérmen o tónus da germinação e da expansão para se desenvolver, se
multiplicar em descendência, e quando tocou a trombeta para a reunião no
próprio local de matriz, na Drave, feliz ideia de uma padre oriundo dela,
aquele vale de Josaphat, a que simbolicamente presidia o espírito do patriarca
Francisco Martins, que se queria honrar, deparou-se com uma multidão de pessoas
que mais parecia, pelo número e variedade aparente da fortuna, romeiros em
demanda do S. Macário! Vencidos, pelos que puderam, os caminhos que de Sul e de
Ponte de Telhe levam à Drave, aqui convergiram os representantes da família
Martins e então se põe de verificar que o mesmo laço prendia aquela terra o
rural de mãos calosas e ásperas com o doutor, o engenheiro, o padre, o
industrial, o comerciante, de mãos patrícias e acetinadas, em franca e aberta
confraternização familiar, ramos do mesmo tronco e que as contingências da vida
e da fortuna tornaram económica e socialmente desiguais, mas naquele momento
todos ricos pela comunhão de sangue e origem, de sentimentos e até de farnel!
Tem vindo essa
família periodicamente a reunir-se para que nela não entre o mórbus da
decomposição, da dispersão, mas não obstante essas refrescadelas de
confraternização, a Quinta perdeu a categoria que tivera no passado. Tanto ela
como as do Toural e de S. Mamede perderam o seu carácter específico e ate o seu
isolamento pelo fácil acesso que todas elas mais ou menos têm. Já o
proprietário delas não vive na Quinta e para a Quinta, que a vida e as
possibilidades são agora outras, como é bem outro o vinho que produziram pela
invasão do «americano» que nelas medra como coisa ruim. Mal se ouvem, ao
derredor, os espirros dos chibantes e o tilintar rouco dos chocalhos. Comparados com o passado todas elas foram
chão que deu uvas. Outros tempos, outros meios, outros costumes.
Oxalá que não sejam
votadas ao abandono, transformadas em matas de eucaliptos.
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