Aquela Serra
FERREIRA, Albano,
Arouca Vista de Dentro:
Aquela Serra» in
Defesa de Arouca, de 31-03-1956. p. 2
«Bem sei que
o meu amigo já subiu à serra da Freita daquela vez que aproveitou a raridade de
um dia bonito, no tempo em que ainda havia estrada, para ver a festa da Senhora
da Lágem a regalar-se, encostado à fraga, com o riquíssimo almoço de que fôra
prevenido, e foi depois de longada até à Mizarela para ver essa coisa
maravilhosa de que muito se falava e era a fecha, a queda de água de cerca de
setenta metros de altura, coisa digna de se ver, e que chegado ali, com
surpresa sua, sofreu o desconsolo de não ter visto queda nenhuma nem viv´alma
do povoado para lhe explicar como aquilo era.
Valeu-lhe
até a previdência de se fazer acompanhar de um pingato de estalo para atalhar a
suadela e parece-me que ainda estou a ouvi-lo, eu que não estava presente mas
sei como elas acontecem, proferir aquela sentença de homem asizado: fica-te
Mizarela, a Cascais uma vez e nunca mais!...
Se não fôra
o panorama, para si inédito, que disfrutara ao contemplar o vale que tinha a
seus pés e os longes que avistara das alturas e sobretudo aquela esplendorosa
procissão religiosa, que pelo encanto inesperado muito o surpreendeu, pois
donde estava lhe deu por momentos, sob o sol glorioso, com o colorido quente
dos andores, das opas e dos atavios das mulheres, em longas filas, a esvoaçar
dos rútilos pendões, os cânticos, o tom marcial das marchas musicais, a que só
faltava a avançada clássica das trombetas, a visão perfeita, de uma marcha
triunfal e ao mesmo tempo propiciatória aquele deus Pan dos tempos Helénicos, -
o meu amigo não teria dado por bem empregado, como deu, a estopada que lhe
puzera o corpo num feixe e a pele da cara e dos braços queimada como se viera
de atalhar um incêndio.
Por aqui
ficou o seu contacto com a serra. Voltou a olhá-la como reservatório
inesgotável das fontes e das levadas, e, homem do vale, sem interesse.
Longe de
si, e de todos nós afinal estava a ideia de que aquela serra viria a ser, como
foi descoberta por um engenheiro florestal enamorado, cujo nome não pode deixar
de ser aqui lembrado – o Eng.º Freire Temudo, que revelou aos arouquenses estar
ali, naquele massiço, um inexplorado elemento de riqueza e encanto.
Começou
então o amorio da Administração Florestal, pelo atavio das suas encostas com
essências apropriadas, a esmeralda dos seus jardinzitos-viveiros, a salpicadela
das suas moradias brancas, a tela da estradinhas serviçais, por onde já singram
desde os biciclos puxados por um asno aos palácios rolantes das camionetas de luxo.
Ali vai nascer
a riqueza e a valorização da nossa terra, incompreendida, odiada mesmo, por
muitos? Sem dúvida, mas riqueza e valorização.
Já acto
assinalado, por ser o da arrancada, foi a abertura da estrada da Granja de
Figueiredo às alminhas da Granja e, daqui ao planalto, o arranjo do impossível
carreiro de cabras pela encosta eriçada de fragas, onde viria a assinalar-se um
brasileiro-regresso que desejoso de ver a sua terra meteu uma «espada» por
aquele carreiro e apareceu no Merujal ante a estupefação do nativo, acto
heroico que foi depois repetido e ampliado pelo Albino Calçada que, desta vez
sem marreta, quis dar cabo de uma camioneta que levou de guinada até aquelas
alturas – façanhas tão heroicas, tão brutais, como os daquela lendária
travessia do atlântico que espantou as gentes e em que os meus heróis correram
idêntico perigo – uns de irem para o fundo do mar e outros para a profundeza da
escraviança, sem esperança de se lhes aproveitar a alma...
Todos estes
sucessos, meu amigo, têm modificado e estão a modificar a vida íntima, pacífica
e silenciosa da nossa serra. Albergaria já tem casas cobertas a telha marselha
e perdeu o seu esplêndido isolamento. O Merujal trouxe à baixa, à festa da
Feira das Colheitas, a riqueza ignorada das suas danças e dos seus cantares,
rapazes e raparigas ricos de genica que o velho Campas agrupou e fez um
elemento folclórico que bem pode representar Arouca em qualquer competição.
Já os
campistas e um ou outro skiador de boa vontade lhe procuram altitude, a
amplidão de horizontes e a neve. Já a Freita tem a honra de ser indicada nos
mapas das associações ao ar livre como detentora do acidente geográfico mais
importante da Península. Já à Lágem acodem dezenas de automóveis e camionetas;
já os de cá da vila vão até lá cima gisar uns almoços e passarem a tarde de
papo para o ar. Já outros têm renovado a miragem, que eu já experimentei, de
construírem ali um covil para férias ou para entreter os ócios na pesca e na
caça. Outros, mais objectivos, tem pensado nos benefícios que se podem tirar
com a cultura industrial da batata, à semelhança do que se faz em outras serras
com resultado e um ou outro numa casa de repouso para doentes ou derreados.
E tudo isto
e muito mais, meu amigo, está apenas dependente do primeiro que arrancar,
instalando ali um casebre gelioso a que possa dar um ar de pouzada par os
chamados fins de semana da gente da cidade.
A Freita
tem condições especialíssimas para se desenvolver e se valorizar, a primeira
das quais por estar a dois passos do Porto e depois por ser a serra mais alta,
mais acidentada e ao mesmo tempo mais planaltos e bonita ao alcance de mão.
Condição fundamental é sem dúvida uma boa estrada de acesso, já, de resto,
aberta, mas que preciso é melhorá-la e macadamanisa-la.
Outra é
levar até Manhouce para tornar mais rápido o trajecto de São Pedro do Sul, da
Beira, afinal, ao norte, aquela estradinha serviçal que os beneméritos serviços
florestais já abriram até Gestoso. Naquela e nesta estradinha estão o rastilho
de valorização da Freita. Contemos com o dinamismo, sempre patente, da
Administração Florestal, que ainda pode exceder-se se nos der a possibilidade
de poder mostrar-nos que naquela serra existe de facto o acidente geográfico
mais importante da Península, pondo à descoberta, por um miradouro, a fecha, a
tal queda de água de que muito se fala e ninguém vê. E o meu amigo, para
terminar esta troa de impressões, fica com o especialíssimo encargo de dizer ao
velho Campas que não deixe estiolar no Merujal esse filão de encanto que é o
seu grupo folclórico, metendo nele gente nova, sangue novo. Valorisemos a nossa
terra.»
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