quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

«Arouca vista de Dentro»



FERREIRA, Albano, Arouca Vista de Dentro: Albergaria das Cabras, 
 in Defesa de Arouca n.º 36, de 14-01-1956. pp. 1, 2 e 3.




«Não foi, soceguem, qualquer acontecimento ou facto anormal que mereceu ser posta hoje em relevância a mais arrumada, esquecida e pacata freguesia deste concelho – Albergaria das Cabras. Daqui a pouco diremos o motivo que nos levou a chamarmos à «Defesa» a primeira das freguesias na lista do concelho.
          Albergaria das Cabras é talvez a mais pobre e a mais curiosa das nossas freguesias. Tipicamente serrana, enclausurada entre penedias, bucôlica, viveu e vive sem problemas. É muito limitada a actividade dos seus habitantes: o granjeio da terra e a pastorícia a paz virgiliana de que falam os poetas.
            Típicos, inconfundíveis quando descem ao vale e sobem a encosta da Freita carregando, atestados, os loucos corporais, destacam-se neles duas estirpes, dois elementos etnográficos curiosos.
            Sendo Albergaria um agregado familiar imposto pela orografia e pelo isolamento, condicionados os naturais a casamentos – dois elementos autoctones os separam contudo: o loiro, de olhos azuis, cabelos encaracolados, altos, erectos, sêcos, do tipo nórdico, e o moreno, com predominância nas mulheres, miúdos, cabelos pretos, retintos, escorregadios, lisos, olhos negros, brilhantes, do tipo arâbico.
            Dois elementos os unem contudo: o patronímico TAVARES e a espêrteza, a inteligência, a desconfiança.
            O patronímico TAVARES, resto de personalidade notável perdida no tempo, que tem vindo através das idades como um seixo rolado no leito de um comprido rio, é tão imperioso que para distinguir os homens se tem de se socorrer do apelido! O Mizarela, o Ruço, o da Venda, o do Meio, o Casanova (o Casanova!) etc. E a desconfiança é um produto típico do isolamento... e do fisco. Nenhum nenhum mortal, que eu saiba, os viu a dançar, a cantar, a tocar qualquer instrumento músico, e sendo uma região de analfabetos todos aprenderam a ler e escrever quando ali funcionaram umas escolas móveis; não acodem a festas, nem mesmos as mais notáveis.
            Que me lembre nunca vi nenhum pelo S. Bartolomeu, pela Senhora da Lágem, as mais atrativas do concelho. Também não aparecem, em primeira mão, a qualquer forasteiro, que lhe devasse a povoação: Não vê viv´alma quem fôr a Albergaria, nem o rapazio, sempre pronto a ver «os tios» em qualquer terra habitável. Todos se metem em casa, silenciosos, quando lobrigam, a convergir sobre a povoação, qualquer mortal estranho ao meio.
            Sendo assim como são, não têm problemas no seu agregado, nem aspirações. São um produto da terra e a terra é para eles a única ambição. Sendo pobres na generalidade, não são contudo medicantes.
            Têm ali os etnógrafos vastos elementos de interesse e de estudo. Aqui se sugere a visitarem Albergaria e a estudarem os seus naturais.
            Feito isto à maneira de introdução, surge agora a razão destas mal notadas linhas – porque não havemos de reduzir e limitar só ao termo de Albergaria o topónimo Albergaria das Cabras? - das Cabras, para quê? Não estará mais certo, mais conforme a razão da fundação da freguesia que o seu nome seja só o de Albergaria?
            Não é novidade para ninguém que a povoação teve a sua origem na fundação pelas freiras do Mosteiro, nos recuados tempos, de uma Albergaria na serra para recolha e pouzada dos viandantes e almocreves, e talvez liteiras com donas e bispos, que do Porto tivessem de tomar a direcção de Vizeu. Era o caminho mais próximo, mais comodo em face da vida romana de que vemos ainda restos junto de Gestoso. A empresa não se tornaria difícil no verão ou ocasião de tempo limpo e firme.
            Mas o mesmo não aconteceria no Inverno e arriscadíssima, diríamos impraticável, seria em períodos de nevoeiro; e quem já experimentou ser inesperadamente apanhado pelo nevoeiro na Freita, sem pontos de referência para orientação, ou nunca de lá sai, por muito que ande, vai ter a algum barranco ou regressa ao ponto de partida, julgando que progrediu na direcção almejada. E naquele deserto pode berrar o que quizer que ninguém, a não ser por milagre, lhe acode. Foi uma necessidade e uma obra de caridade estabelecer naquela serra, ao tempo deserta, uma Albergaria. Desta nasceu a actual freguesia e povoações limítrofes. A Freita seria o Adamastor de granito para os viandantes.
            Povoada a serra, Albergaria ficou sendo o topónimo da inicial pouzada. Fácil e lógico foi o acrescento «das Cabras», por que, animais dos meios pobres e escassos de alimentação, seriam o único a fornecer de carne os moradores da terra. Os currais de então estão ali ainda bem patentes e tirante uma ou outra casa com geito de habitável, o resto, onde vive gente, se confunde com os currais daquele animal daninho e rústico.
            Os tempos são agora outros para Albergaria: Já tem fácil acesso pelas estradas dos beneméritos serviços da Administração Florestal, caminho aberto para a telha, para o vidro, para o baton, paras as meias de Nylon, para o progresso, enfim. Já os seus jóvens naturais frequentam o Liceu.
            E vejam agora o embaraço destes civilizados perante a pergunta duma camarada: Donde é o menino? – de Albergaria das, das Cabras! – ??, de quê? das Cabras?
– Mas isso é um curral!
            Poupemos aos seus naturais e até à harmonia gráfica dos topónimos do concelho, o nome de Cabras, que nada tem de simpático, e de fácil remédio. Por que não há-de ficar Albergaria apenas ou Albergaria da Serra, para os que gostam das coisas mais arredondadas? Bem sei que há por esse país fóra topónimos patuscos: – Escalos de Cima, Alguidares de Baixo, Currais, eu sei lá! Aqui é outra gente.
            Também na nossa freguesia de Espiunca houve uma povoação que mudou de nome por que o primitivo não era dos mais sonoros e escorreitos. Foi Vila Viçosa.
            Nada custou a mudança. Façam as entidades oficiais o mesmo a Albergaria das Cabras. É uma justiça. Seria até uma obra de caridade.»

Sem comentários:

Enviar um comentário

Sujeito a validação por parte do Administrador