Estórias e Memórias


Vivências do folclore na Feira das Colheitas, quando os tempos eram outros 
  

A 22 de Outubro de 1944 inaugurar-se-ia aquele que viria a ser um dos ex-libris do concelho de Arouca, a Feira das Colheitas. Certame organizado, então, pelo Grémio da Lavoura, destacou-se pelo seu carácter agropecuário mas também pela preocupação em recuperar o folclore e as tradições que já se julgavam esquecidas nas aldeias serranas de Arouca.
No ano da 5.ª edição da Feira das Colheitas, em 1948, a Direcção do Grémio da Lavoura, em ofício dirigido à Câmara Municipal, referia que a Feira das Colheitas era um certame “destinado, principalmente, a promover o fomento agrícola do concelho e, também, a cultura popular no que ela tem de mais |rico| e belo – as tradições regionais” e acrescentava “que alguma coisa se tem conseguido de proveitoso neste particular”, ainda assim “não tanto como é preciso e cumpre que se faça”. Entre outras iniciativas e com o intuito de “|criar| no lavrador o amor à terra” a Direção do Grémio decidiu “premiar os melhores Ranchos que se apresentem ao respectivo concurso, como meio de estimular o gosto pelo folclore regional”.
Viriam a ser distinguidos com o 1.º lugar o Rancho do Merujal com um prémio de 800$00; em 2.º lugar, o Rancho de Moldes com um prémio de 600$00 e em 3.º lugar os Ranchos de Canelas e Fermedo, com um prémio no valor de 500$00. Foram júri o Dr. Vasco Maris, Vice-cônsul do Brasil no Porto, Professor Armando Leça, Dr. Simões Júnior, Joaquim de Pinho Brandão, presidente da Câmara Municipal de Arouca, representantes dos diários “Comércio do Porto” e “Diário da Manhã” e do semanário “Defesa de Arouca”.
A “Defesa de Arouca”, na sua edição de 25 de setembro de 1948, relatava que “De todos os números do programa, o concurso dos Ranchos, de cujo júri fazem parte altas individualidades, é que está despertando mais interesse e constituirá sem dúvida, um espectáculo maravilhoso, impregnado de côr e regionalismo”.
O folclore e os agrupamentos folclóricos tornaram-se num dos protagonistas da Feira das Colheitas. Mobilizaram multidões e deram à Feira o que ela precisava para ser, também, uma grande festa.
A pujança da festa incutida pelos grupos folclóricos não passou imune aos abastardamentos da tradição e a década de 60 é disso testemunha. A cedência aos encantos da cidade manchou a pureza do trajo serrano, o genuíno dos ritmos e vozes de tocadores e cantadores e, às vezes, até do pudor das raparigas. Pela mão de Albano Ferreira, a quem a etnografia arouquense muito deve, foram sinalizadas muitas mazelas que atacavam os grupos de folclore. E, o início da década de 70 é marcado pelo quase desaparecimento dos agrupamentos folclóricos de Arouca, na Feira das Colheitas. Apesar de alguns grupos não terem sobrevivido, uns reestruturaram-se e ressurgiram e outros nunca chegaram a parar.
Fomos à procura de memórias e vivências do folclore vividas na Feira das Colheitas, quando os tempos eram outros. E fizemo-lo no seio do Rancho de Moldes pela inegável ligação umbilical à Feira das Colheitas e pela sua capacidade de conservação ao longo de décadas.


No palco em busca da distinção


César Soares, do lugar da Aldeia, da freguesia de Moldes, tem 78 anos e foi dançador do rancho nos primeiros anos. Conta que os componentes de cada agrupamento “levavam os concursos muito a sério”, porque, na altura, o rancho e o folclore em geral eram o “único divertimento”. “O rancho de Moldes era sempre o galo”, lembra, falando num português com sotaque brasileiro, resultante de uma vida no Brasil, e garante que o rancho era “muito invejado pelos outros”.
A opinião é partilhada por Nilde e Albina, do Bairro, ex-dançadeiras do Rancho de Moldes. Quando chegava a vez do Rancho de Moldes atuar, “a aparelhagem deixava de funcionar e até a luz falhou algumas vezes”, recorda Nilde. “Foi sempre um rancho incomodativo”.
Naquela altura, a Praça Brandão de Vasconcelos já era o «espaço do folclore», no entanto, Nilde recorda que também chegou a dançar num palco montado em frente ao edifício da Câmara.
A ordem de actuação era decidida por sorteio. Conta Nilde que “o professor Almeida Brandão fazia uma reunião com os directores de todos os ranchos na pensão Ferreira Pinto e pagava-lhes o comer ao meio-dia. Depois pegava num saco onde estava a ordem de actuação. Cada director tirava a sua ordem e ninguém refilava”.  
“Tínhamos vinte minutos para actuar de cada vez e não repetíamos as modas”, afirma Nilde. E porque voltariam a actuar à noite, passavam todo o dia trajados em passeio pela vila e visitavam as “bonitas e grandiosas exposições”. “Naquela altura ninguém nos roubava o ouro, que era verdadeiro. Só usávamos um ou dois cordões e era o Albano Ferreira que «dava» o que entendia a cada rapariga”. “Ele tinha duas malas cheias de ouro”, complementa Albina.
Ainda no tempo de Nilde e Albina, o Grémio oferecia “regueifas e vinho”. A verdadeira farra começava depois da actuação à tarde. “O professor Miranda já dirigia o grupo e no fim da actuação íamos comer e beber para a antiga Casa da Música. Ele andava na Música da vila e pedia ao Manuel Alves a casa, que é aquela que está ao lado da Câmara, no início da rua da Lavandeira, do lado direito. O grupo ia para ali comer e beber e dançar, dançávamos muito”, conta com nostalgia.
César Soares lembra-se que no final da década de 40, início de 50, “cada um ia no seu pé e se arrumava como podia para se encontrarem na vila”. Segundo este «contador de memórias e vivências», os pais dos jovens que andavam no rancho acompanhavam os filhos e levavam o farnel que depois se comia debaixo das ramadas. Por outro lado, Albina recorda quando uma sêmea era partida a meio para cada duas dançadeiras, rematando que a fome era alegria.
Mais tarde, o Grémio da Lavoura começou a pagar o transporte aos grupos. “Vinha uma camioneta do Calçada buscar-nos”, recorda Albina. Mas Alcides Duarte, de Fuste, ainda se lembra que no primeiro ano que foi à Feira das Colheitas, tinha ele 17 anos, foi a pé, “para baixo e para cima”. E para cima já vinham “a altas horas da noite”.
A participação nas Colheitas exigia preparação. Os «palheiros», ora deste, ora daquele, acolhiam os «moços» e as «cachopas», novos e velhos, para que uns cantassem, tocassem e outros dançassem. Mas, a adaptação às modas quase esquecidas que foram de seus pais e avós, não era fácil. As meninas novas precisavam de alguns ensaios para se desabituarem das valsas que se dançavam nos bailes e para aprenderem a dançar as modas antigas, com os conhecidos compassos e trespasses.


“Havia muita fartura de quem cantava, tocava e dançava”


“Havia muitos tocadores e cantadores e hoje é mais difícil encontrar quem toque e quem cante”, lamenta Nilde. “Antigamente dizia-se que havia um cantador em cada lugar de Moldes e agora não. E havia quem tocasse muitíssimo bem cordas”. E, por isso, os grupos tinham muito mais elementos do que hoje. Não faltava quem quisesse “andar no rancho”.
César Soares lembra que, por respeito, os directores pediam aos pais das raparigas para estas irem para o rancho para irem à Feira das Colheitas e acrescenta que “eram exigentes”, deixando subentendido que escolhiam as mais bonitas. A esposa, Albertina Lima do Vale, de 83 anos, lembra que no primeiro ano que foi para o rancho não a deixaram dançar. “Eu era muito pequenina”, justifica.
Também a roupa para subir a palco era pedida e assim se descobriam verdadeiras relíquias. Do fundo das arcas saltaram as saias pretas, ali religiosamente guardadas à espera de amortalharem as suas donas –a chamada «roupa de mortalha».
“As calças pretas nós comprávamos ou então pedíamos emprestadas. Cada elemento tinha de se desenrascar. Por acaso as primeiras calças que vesti já eram minhas e a camisa branca também. Mesmo assim, lembro-me que ainda se usava as calças brancas de linho e o casaco de burel e também um lenço tabaqueiro apertado com uma caixa de fósforos, mas eu já não usei isso”, recorda Alcides.
Quanto aos ranchos, Nilde, que actuou pela primeira vez na Feira das Colheitas com apenas 11 anos e só com dois ensaios, recorda que eram em maior número os grupos que participavam nas Colheitas e eram “mais homogéneos”. “Apesar de cada um dançar as suas danças, mantinham um ritmo semelhante e agora não. Alguns parecem autênticas rodas de cavalinhos”, reprova. “Lembro-me que o rancho de Chave era muito bom e o de Alvarenga também. Fermedo também se destacava. Era sobretudo com estes que Moldes disputava o concurso”, remata.
“O povo ia às Colheitas por causa do folclore”, conclui, convicto, César Soares. 

Texto de Sandra Gomes com Ana Cristina Martins
In Discurso Directo, edição n.º 226, de 12 de Outubro de 2012

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